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Entregue ao Senado Federal na quarta-feira
(17/4) pela comissão de juristas responsável por sua elaboração,
o anteprojeto de reforma do Código Civil apresenta uma novidade
importante sobre sucessões: os cônjuges deixam de
ser herdeiros necessários. Pela redação atual (de 2002) do artigo
1.845 do Código, os herdeiros necessários são os descendentes (filhos e
netos), os ascendentes (pais e avós) e os cônjuges.
Isso
lhes garante direito a uma parte da herança legítima, que equivale a
metade dos bens do falecido. Ou seja, 50% do patrimônio obrigatoriamente
é destinado a todas essas pessoas e deve ser dividido entre elas.
Caso o texto sugerido pela comissão seja aprovado,
o cônjuge será excluído do artigo 1.845 do Código Civil, uma
medida que é bem vista por boa parte dos especialistas em Direito de
Família e das Sucessões.
A
advogada Silvia Felipe Marzagão, presidente da Comissão Especial de
Família e Sucessões da seccional paulista da Ordem dos Advogados do
Brasil (OAB-SP), explica que o cônjuge ou companheiro é considerado
herdeiro “mesmo havendo regime de separação
convencional estabelecido em vida”. Hoje, o cônjuge só perde o
direito à herança legítima se for deserdado “ou
eventualmente declarado indigno”, conforme indica a advogada
Maria Berenice Dias, vice-presidente do Instituto Brasileiro de Direito
de Família (IBDFAM).
Em
alguns regimes de bens, o cônjuge tem direito à meação, que corresponde
à metade do total dos bens que integram o patrimônio comum do casal,
adquirido em vida. Rafaella Almeida, associada de Família e Sucessões do
escritório Trench Rossi Watanabe, ressalta que a proposta da comissão
não altera essa possibilidade. Mesmo se deixar de
ser herdeiro necessário, o cônjuge ainda continuará na ordem de sucessão
hereditária prevista no artigo 1.829 do Código Civil. Os cônjuges ou
conviventes são os terceiros nessa ordem, atrás de descendentes e
ascendentes.
Isso
significa que, se não houver um testamento, os bens são destinados aos
descendentes e ascendentes. Na ausência deles, a transmissão é feita ao
cônjuge. Rafaella, porém, destaca que o cônjuge
ainda poderia ser excluído da ordem de sucessão pelo testador, que
poderia incluir tal previsão no testamento ou não contemplar o cônjuge
ao dispor seu patrimônio.
Em 2017, o Supremo Tribunal Federal decidiu que
companheiros (de uma união estável) e cônjuges têm os mesmos direitos de
herança. Na ocasião, no entanto, a corte não deixou claro se os
companheiros também poderiam ser considerados herdeiros necessários, o
que gerou controvérsia. A solução encontrada pela comissão de revisão do
Código Civil foi excluir os cônjuges — e, consequentemente, os
companheiros — do artigo 1.845.
O presidente do IBDFAM, Rodrigo da Cunha Pereira,
afirma que a proposta “vem corrigir um grande erro do Código Civil de
2002”, que abriu uma “rota das injustiças”. O advogado sempre
entendeu que companheiros não são herdeiros necessários.
Silvia Marzagão afirma que a proposta da comissão
é positiva, pois “amplia a autonomia do autor da herança para dispor de
seus bens”. A partir da mudança, seria possível
“pensar em completa dissociação patrimonial entre
os cônjuges ou companheiros, tanto em vida quanto após a morte”.
Felipe Matte Russomanno, sócio da área de Família e Sucessões do
escritório Cescon Barrieu, também vê a alteração com bons olhos
“porque ela permite uma maior disponibilidade
sobre o patrimônio e a herança como um todo”.
Rafaella Almeida concorda que “a nova redação do
dispositivo visa a promover a autonomia privada do testador, caso não
seja de seu interesse dispor de seus bens ao cônjuge”. Assim, o
testador poderá organizar a herança da forma que preferir, dentro dos
limites da herança legítima. “O objetivo da
alteração é que o casamento deixe de ser um óbice ao direito de dispor
do patrimônio próprio”, assinala a advogada.
Russomanno ressalta que, além da herança legítima, também existe a
disponível, correspondente à outra metade do patrimônio. A pessoa pode
dispor dessa parte dos bens da maneira como quiser. Outro benefício
identificado por Rafaella é o estímulo ao planejamento sucessório, que
se refere às estratégias de organização para a transmissão dos bens aos
herdeiros.
Segundo ela, os casais “poderão endereçar as suas
vontades por meio de testamentos e pactos antenupciais, a fim de que não
seja necessário escalar a questão judicialmente”. Russomanno
destaca que o planejamento sucessório “tem se
tornado uma prática cada vez mais utilizada no Brasil”, embora
ainda não seja popular. Mesmo se for aprovada a alteração no texto do
Código Civil, quem quiser contemplar o cônjuge com patrimônio ainda
poderá usar o testamento ou outros mecanismos de planejamento
sucessório. “Isso não significa necessariamente um
prejuízo a cônjuges, mas, sim, uma maior disposição”, pontua o
advogado.
Por
outro lado, Maria Berenice Dias diz que a regra proposta pela comissão
“exclui direitos que haviam sido assegurados no Código Civil de 2002”. O
problema, para ela, é que normalmente o patrimônio de um casal fica no
nome do homem. Na visão da advogada, isso é fruto de uma sociedade
conservadora, machista e fundamentalista. A vice-presidente do IBDFAM
reconhece que o anteprojeto estabeleceu alguns direitos sucessórios ao
cônjuge e ao companheiro, “mas todos
transitórios”.
Outro artigo do novo texto diz que o juiz poderá
“instituir usufruto sobre determinados bens da herança para garantir a
subsistência” do cônjuge ou sobrevivente caso haja
“insuficiência de recursos ou de patrimônio”.
No entanto, o dispositivo estipula que isso deixará de valer quando a
pessoa “tiver renda ou patrimônio suficiente para
manter sua subsistência” ou quando “constituir nova entidade
familiar”. Esta última condição é classificada por Maria Berenice como
“um absurdo”, pois “acaba impondo um celibato a quem recebe esse
eventual direito”.
Em
outras palavras, o direito só vale se a pessoa “se
mantiver fiel ao defunto”, sem a possibilidade de formar uma nova
família após a morte do antigo cônjuge ou companheiro.
A advogada elogia um outro ponto do
anteprojeto relacionado ao mesmo tema: a exclusão do direito dos
cônjuges a um quarto da herança sobre os bens particulares — ou seja,
bens que o outro cônjuge ou companheiro tinha antes do casamento ou da
união estável, além daqueles recebidos por doação ou herança. O
artigo 1.832 do atual Código Civil garante ao cônjuge, caso seja
ascendente dos outros herdeiros com quem concorrer, a reserva de um
quarto da herança. A proposta da comissão acaba com essa regra.
Na
opinião da vice-presidente do IBDFAM, a regra atual
“sempre foi causa de um enriquecimento
injustificado, porque esse patrimônio foi amealhado independentemente da
participação do outro”. O máximo que a advogada enxerga como
possível é garantir ao cônjuge ou companheiro esse direito de
concorrência sobre os bens adquiridos durante o casamento ou a união
estável.
Segundo ela, são comuns as chamadas famílias recompostas, nas quais
alguém divorciado ou viúvo se casa novamente com outra pessoa ou inicia
uma união estável. Hoje, o novo cônjuge ou companheiro fica com uma
fatia dos bens particulares dessa pessoa. Isso, segundo Maria Berenice,
gera conflitos e faz com que os filhos tentem impedir os pais (que
tenham algum patrimônio) de constituir novos relacionamentos.
Fonte: conjur.com.br
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